‘Candelária nelas’
Matheus Pichonelli 27 de agosto de 2011 às 9:03h Megaexposição de casos envolvendo crianças funciona, vira espécie de reality show, e raivosos (ofendidos) se manifestam para cuspir ignorância e sugerir novas chacinasNinguém gosta de ser roubado. Ninguém gosta pagar impostos e topar com ineficiência da gestão pública que nos empurra a contratar serviços de saúde, educação e segurança particulares, embutidos nas travas do carro blindado de fechamento automático, do alarme do portão de casa, nas cercas elétricas, de arame farpado ou cacos de vidro juntados no muro, nos vigias contratados pela direção do condomínio, da escola dos filhos, do prédio do escritório ou da balada.
É revoltante descer do carro e reencontrá-lo, minutos depois, riscado, amassado, estourado, sem o aparelho de som. Ou voltar para casa e se deparar com a porta arrombada, o armário revistado, limpo. Ou sentir algo escapar dos bolsos ou das mãos durante um passeio apressado após um encontrão previamente estudado por alguém que acaba de fugir com seu celular, ou iPod, ou carteira, ou boné.
Dizer tudo isso não é nada mais que babar no lugar-comum. Mas é necessário que se diga: na semana retrasada, manifestei, por aqui, certo desconforto com o tratamento dispensado a um grupo de garotas que promoviam arrastões na região da Vila Mariana, em São Paulo. Chamava a atenção a falta de cuidado da própria mídia, especialmente a televisiva, que, sabendo dos medos contidos na população, pintava as meninas como ponto nevrálgico dos distúrbios de toda ordem pública de uma cidade de 11.253.503 habitantes.
A ideia era apenas chamar a atenção para a desproporção da revolta da opinião pública diante do caso. Pensava, e ainda penso, que os motivos não eram outros se não uma manifestação de classe. Porque a rua é, e sempre foi, o espaço de transgressões, tanto pelo filho do rico como para o filho dos pobres. Só que somente um deles é chamado de “marginal”. Somente um deles é convidado ao extermínio. Somente um deles é visto como câncer moral. Diante de uma câmera de tevê, a mãe de uma das meninas da “gangue”, aparentemente mentora dos crimes, foi flagrada lamentando que a filha havia marcado bobeira por ter voltado ao lugar do delito.
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A exploração, a esperteza, a ideia de se dar bem a todo custo acabava de ganhar um rosto, uma representante. Sabendo disso, as emissoras de tevê apostaram no tema e criaram o que pode ser considerado um case. Voltaram às ruas e divulgaram novos flagrantes, desta vez de depredações. Cena 1: um grupo de crianças invade um hotel, na região da Paulista, rouba uma carteira, e corre. Cena 2: elas são encontradas pela polícia. Cena 3: são levadas para o encarceramento. A sede do conselho tutelar não tem grades, mas a tática é a mesma: câmeras posicionadas para mostrar a reação delas ao serem enjauladas numa sala. Cena 4: elas se revoltam e arremessam objetos contra as câmeras. Numa das cenas, um garoto é levado pelos braços por um policial. Caminhava até calmamente até que, de novo, é alvejado pela câmera. E tome voadora contra o paparazzi. Numa das emissoras, a repórter chega a se queixar do deboche das crianças ao se verem expostas numa Kombi e mostrando os dedos para a equipe. Ultrajante.
A insistência no assunto deu força, mais uma vez, a toda espécie de discurso pró-extermínio.
Nunca é bom duvidar do quanto a ala raivosa da elite nacional (é preciso soletrar ou desenhar: nem toda a elite é raivosa) é incapaz de compreender o preço pago por tratar como animais grupos historicamente marginalizados. Nem do potencial destruidor de suas (nossas) ações ao incentivar ou se omitir diante do subemprego, dos maltratos, das remoções que empurram populações inteiras morro acima. Ou quando ignoramos os abismos de oportunidades que são negadas a determinados grupos que não tiveram acesso a determinados luxos. Como tomar banho.
Muitos, ao lerem o texto da semana passada, chatearam-se com o termo “elite raivosa” do título. Responderam com mais raiva. E, nos comentários do artigo, espaço criado para apimentar o debate, pintaram sua autocaricatura. Nada demais: o ódio, nesse caso, é apenas construção de um inimigo que justifica nossos medos. No caso, o de sair às ruas e correr o risco de perder muito do pouco que se tem, que se acumula; o pouco do muito que garante a sensação de dignidade. “Pois pagos meus impostos.” “Pois trabalho feito louco.” “Pois sou um consumidor lesado.” Como se, de novo, as obrigações financeiras (que já chegaram à favela, diga-se) fossem salvo-conduto para alargar ainda mais o fosso em relação a essa “gentinha diferenciada”. Fosso que dá a garantia para se viver vidas sem-graças, trancadas nos cadeados do próprio medo e hipocondria. Morrendo um pouco a cada dia. E acreditando que, eliminando uma dúzia de crianças de rua, e a mãe delas, estarão a salvo de vidas sem sentido, do medo do fracasso, da perda, da opressão; do fim, enfim.
É um direito delas viver assim: sem entender para que trabalha e paga tantos impostos, afinal. Mas a brincadeira, um dia, perde a graça. Na quarta-feira 24, um dos raivosos resolveu dar sua contribuição para o debate democrático. Em sua manifestação, disse ser até favorável à ressocialização das meninas. Mas que, se reincidissem, “Candelária nelas”. A referência à chacina, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1993, talvez recebesse aplausos se não fosse devidamente removida. O episódio resultou na morte de seis crianças, moradoras de rua que dormiam perto da igreja. Os motivos da chacina até hoje é desconhecida. E nada indica que estamos longe de uma versão paulistana do episódio.
Foi só por temer novas Candelárias (e novos partidos nacional-socialistas que pregam o resgate da dignidade de uma população para defender a destruição de outra) que decidi voltar ao tema. E reforço o que disse há duas semanas: as crianças não são o problema. O crime, sim, é um problema. E o é independentemente de classes e gênero. Como é a impunidade. E como é o apelo a soluções fáceis, higienistas, preguiçosas até, que sempre aparecem nessas horas de aparente descontrole.
Sim, vamos ao chavão: a classe média, como todos, tem direito de reivindicar segurança, educação, saúde e assistência. Tem direito de andar nas ruas sem sobressaltos. E de viver livre, como bem entender. Mas não é só ela que trabalha. Não é só ela que dá duro. Não é só ela que paga impostos. Trabalhar, dar duro ou pagar impostos dá a ela direito a uma série de reivindicações, menos o de pedir o direito de se viver num país segregado, onde a polícia e o Estado detêm o monopólio da violência, mas só podem descarregar suas armas em alguns – os “diferenciados”, sejam eles inocentes ou não, sejam seus crimes puníveis ou não.
É direito de todos pedir e lutar por um Estado mais justo, mais bem preparado, que encaminhe soluções definitivas para a criminalidade. Mas a questão, como lembrou a socióloga Helena Singer, em recente artigo para o portal O Aprendiz, passa pelo fortalecimento das próprias instituições. Algumas pessoas não sabem, mas política também se faz fora de Brasília. É feita também nos bairros onde são instalados conselhos tutelares. Se são insuficientes, podem ser rediscutidos, repensados, remodelados. A participação é bem-vinda, inclusive. É um caminho mais nobre, e mais interessante, do que enjaular as crianças, enfiar câmera na cara delas e esperar que rosnem para aumentar a audiência ancorada no medo da própria sombra de quem assiste.
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