domingo, 23 de junho de 2013

VIOLENTAMENTE PACÍFICOS - por Gustavo Coelho


VIOLENTAMENTE PACÍFICOS



Diante da frequência quase mântrica com que a palavra “pacífica” vem sendo repetida não só no já aguardado discurso midiático viciado em suas características de entorpecente calmante, mas também nas padarias, nas bancas de jornal, nas conversas de ônibus e mesmo dentro das próprias
manifestações, resolvo aventurar-me a pensar sobre a função que essa

repetição tem em nossa subjetividade, assim como tentarei resgatar um

sentido daquilo que essa manobra acaba por invisibilizar, ou seja, os papeis
de base que a violência, a radicalidade, a guerra, o fogo, a festa e a destruição
possuem na perduração das coisas da cultura.




Para começar essa reflexão, vamos à última quinta-feira. Estava na
Candelária na concentração para mais um desses grandes atos, onde ouvi

inúmeras vezes a repetição, também mântrica, do canto “sem violência”. No

entanto, ainda assim, uma mulher com cerca de 40 anos, negra, de

sobrancelha pintada com tinta henna, aproximou-se de mim e disse:

– Tem mais é que queimar tudo, eu quero muito ver a Câmara, a Alerj e

a Prefeitura lamber em chamas! E se eu pudesse, eu ainda jogava meu filho lá

junto para ele pôr fogo nisso tudo também! – disse ela apontando para seu

filho que não tinha mais que 7 anos, também negro e com uma vasta cabeleira

Fiquei pensando no quanto de reminiscências arcaicas havia nessa
vontade anunciada de, em certa medida, lançar seu herdeiro ao fogo. Um fogo que, como todo fogo, carrega em si a ambivalência simbólica que estabelece larga intimidade e indissociação entre suas características destrutivas e construtivas, de morte e de renascimento, de atração e repulsão, de coragem e de medo. Uma ambivalência de difícil compreensão para a racionalidade moderna, a qual em muito no forma, e que com vasto investimento nadicotomização de nós mesmos e do mundo, foi capaz de dilacerar o fogo, atribuindo a ele quase sempre somente a negatividade apenas destrutiva, lançando, portanto, ao incompreensível, a sua função de comunhão e renascimento que ainda assim, mesmo que de forma inconsciente, segue perene em todas as fogueiras, tanto nas mais aparentemente inofensivas de festa junina, quanto nas barricadas contra o avanço da polícia; seja nos


coquetéis molotvs, quanto nos tantos ônibus incendiados. Um fogo, portanto,

que mantém com mais clareza sua dimensão construtiva e acolhedora

somente em velas para oferendas, em bolos de aniversário, na tocha olímpica,
numa lareira de inverno, ou seja, somente quando em chamas pacíficas – um

fogo que serve apenas quando eufemizado. Lembrando, no entanto, que

diante de uma inofensiva vela, não é raro que, sem razão aparente, tratemos

de passar nossos dedos por ela, como se prestássemos contas à potencia

destrutiva do fogo que há mesmo numa inofensiva vela de aniversário. Parece

haver alguma heresia em deixa-lo queimar sem que nos queime ao menos um

pouco. Passamos, então, os dedos de maneira ligeira pela chama. Por vezes,

com um pouco mais de coragem, o fazemos de forma mais lenta, deixando o

dedo arder, a fim de sentir ao menos uma dose da potência destrutiva

escondida naquela pequena forma de calor.





Parece-me, então, para irmos numa mitologia, que o deus asteca

Nanauatzin, uma personalidade que pouco falava, que tinha poucas posses,

humilde, mas que nada temia, recobra seu lugar nos humores de nossa época.

A fim de aceitar o papel de iluminar o mundo, ou seja, de tornar-se o próprio

Sol,  Nanauatzin fechou os olhos e de primeira lançou-se ao fogo de uma
fornalha, consumindo-se, sacrificando-se, diferentemente de  Tecuciztecatl,

deus que concorria com  Nanauatzin pela posição de iluminar o mundo, mas

que gostava de falar, possuía algumas riquezas, mas temia seu próprio
sacrifício e refugou por medo, 4 tentativas de lançar-se ao fogo. Somente na
sequência do mergulho irrefreável de Nanauatzin, como que por contágio, ele

também lançou-se. Tal passagem é utilizada por Bataille ao pensar a noção de

dispêndio como conceito chave para entender a centralidade que o sacrifício, a

troca e a circulação têm em diversas sociedades pré-modernas, e que a

epistême moderna tem dificuldade para compreender, justamente por assentarse na noção de aquisição e progresso – o que torna automaticamente, para

nós, a valorização da perda, em especial da perda de si, própria do dispêndio,

algo da ordem do incompreensível e do “ilógico”. A mãe, então, que deseja

lançar seu filho na ALERJ em chamas, soa irracional, não por ser de fato, mas

por funcionar em outra racionalidade. Um tipo de racionalidade que, a meu ver,

está em fase de reaparição esses dias.






É aí, portanto, que penso agir a cruzada travada pela repetição da

palavra “pacificação”, que já dava seus sinais no seu uso frequente pelas

políticas de segurança no Rio de Janeiro, mas que agora ecoa como a palavra

mais normativa das últimas semanas. Trata-se, a meu ver, de uma manobra

inconscienciosa coletiva de corpos cuja herança moderna, racional e pouco

arriscada, entra em descompasso com a tendência histérica e emocional de

nosso tempo. A fim, então, de resistir a ver a inelutável vocação sacrificial de

todas essas manifestações, o discurso comum cava sua inspiração na

gramática que o forjou, mas que ora caduca, a gramática do risco zero, da

preservação, escamoteando sem saber que o que pulsa quando se grita “sem

violência” é no fundo, um rugido mais do lançar-se ao fogo que do proteger-se

dele. Importa mais, então, como gritam, do que o que gritam. Sendo assim,

quando também vão tratar os vândalos como “infiltrados”, como enviados por

alguma organização maquiavélica que pretende desestabilizar o que ora

poderia ser pacífico, usam tal movimento como resistência a ver em si mesmo

doses, mesmo que menores, daqueles que com pouca cerimônia se lançam

para cima do Caveirão ou para a fornalha no caso dos Astecas. Em outras

palavras, o vândalo é, do meu modo de entender, quem melhor traduz todos

esses movimentos que tem justamente na quantidade de vezes que repetem

“manifestação pacífica”, a prova de que no fundo, mesmo que não saibam,

marcham todos para a fornalha em busca da perda de um “si” já saturado.


Nesse mesmo sentido, o vândalo é um emissário da pluralidade, aquele
que impede que as coisas e o mundo reduzam-se à função, ao papel e uso


único que lhe fora conferido, daí que eles levam ao limite o conceito de

consumidor e no mais profundo termo da palavra, consomem tudo, incineram,

deformam, destroem, fazendo retornar o enigma original de tudo. E não me

venham reduzi-los a qualquer convicção de que estão lá a mando de uma

direita ou uma esquerda. Os linhas de frente são a molecada do nosso dia a

dia, esse bando de Nanauatzins brasileiros, para quem bala de borracha, perto

do que convivem, é diversão, é fogueira pouca. Pois bem, essa molecada não

só saqueia suas televisões e playstations, mas também os destroem, não só

cantam seus funks proibidos com louvações à Mercedes e à Honda, mas

também se empenham em quebrar seus parabrisas, em por fogo nelas, assim

como põem fogo na gramática e na propriedade pela pixação, assim como

deformam o gestual pela funkeirização, assim como aceitam o ludismo das

brigas, assumindo o parentesco entre os socos e abraços nos bailes funks e

nas torcidas organizadas. Não por acaso, são justamente neles que ainda

reside com eloquência esse calor consumidor do fogo tão comum em nossa

cultura popular (vide os facões, peixeiras, espingardas e capoeiras recorrentes

em nosso repertório), mas tão estranho aos que gritam “somos pacíficos”, nos

quais, porém, parece já estar acesa a primeira fagulha. Eu falei dos Astecas,

mas poderia ter falado de Tupinambás, de Xavantes e de Capoeiras, povo todo

esse que sabe muito bem os poderes da faísca.


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