VIOLENTAMENTE PACÍFICOS
Diante da frequência quase mântrica com que a palavra “pacífica” vem sendo repetida não só no já aguardado discurso midiático viciado em suas características de entorpecente calmante, mas também nas padarias, nas bancas de jornal, nas conversas de ônibus e mesmo dentro das próprias
manifestações, resolvo aventurar-me a pensar sobre a função que essa
repetição tem em nossa subjetividade, assim como tentarei resgatar um
sentido daquilo que essa manobra acaba por invisibilizar, ou seja, os papeis
de base que a violência, a radicalidade, a guerra, o fogo, a festa e a destruição
possuem na perduração das coisas da cultura.
Para começar essa reflexão, vamos à última quinta-feira. Estava na
Candelária na concentração para mais um desses grandes atos, onde ouvi
inúmeras vezes a repetição, também mântrica, do canto “sem violência”. No
entanto, ainda assim, uma mulher com cerca de 40 anos, negra, de
sobrancelha pintada com tinta henna, aproximou-se de mim e disse:
– Tem mais é que queimar tudo, eu quero muito ver a Câmara, a Alerj e
a Prefeitura lamber em chamas! E se eu pudesse, eu ainda jogava meu filho lá
junto para ele pôr fogo nisso tudo também! – disse ela apontando para seu
filho que não tinha mais que 7 anos, também negro e com uma vasta cabeleira
Fiquei pensando no quanto de reminiscências arcaicas havia nessa
vontade anunciada de, em certa medida, lançar seu herdeiro ao fogo. Um fogo que, como todo fogo, carrega em si a ambivalência simbólica que estabelece larga intimidade e indissociação entre suas características destrutivas e construtivas, de morte e de renascimento, de atração e repulsão, de coragem e de medo. Uma ambivalência de difícil compreensão para a racionalidade moderna, a qual em muito no forma, e que com vasto investimento nadicotomização de nós mesmos e do mundo, foi capaz de dilacerar o fogo, atribuindo a ele quase sempre somente a negatividade apenas destrutiva, lançando, portanto, ao incompreensível, a sua função de comunhão e renascimento que ainda assim, mesmo que de forma inconsciente, segue perene em todas as fogueiras, tanto nas mais aparentemente inofensivas de festa junina, quanto nas barricadas contra o avanço da polícia; seja nos
coquetéis molotvs, quanto nos tantos ônibus incendiados. Um fogo, portanto,
que mantém com mais clareza sua dimensão construtiva e acolhedora
somente em velas para oferendas, em bolos de aniversário, na tocha olímpica,
numa lareira de inverno, ou seja, somente quando em chamas pacíficas – um
fogo que serve apenas quando eufemizado. Lembrando, no entanto, que
diante de uma inofensiva vela, não é raro que, sem razão aparente, tratemos
de passar nossos dedos por ela, como se prestássemos contas à potencia
destrutiva do fogo que há mesmo numa inofensiva vela de aniversário. Parece
haver alguma heresia em deixa-lo queimar sem que nos queime ao menos um
pouco. Passamos, então, os dedos de maneira ligeira pela chama. Por vezes,
com um pouco mais de coragem, o fazemos de forma mais lenta, deixando o
dedo arder, a fim de sentir ao menos uma dose da potência destrutiva
escondida naquela pequena forma de calor.
Parece-me, então, para irmos numa mitologia, que o deus asteca
Nanauatzin, uma personalidade que pouco falava, que tinha poucas posses,
humilde, mas que nada temia, recobra seu lugar nos humores de nossa época.
A fim de aceitar o papel de iluminar o mundo, ou seja, de tornar-se o próprio
Sol, Nanauatzin fechou os olhos e de primeira lançou-se ao fogo de uma
fornalha, consumindo-se, sacrificando-se, diferentemente de Tecuciztecatl,
deus que concorria com Nanauatzin pela posição de iluminar o mundo, mas
que gostava de falar, possuía algumas riquezas, mas temia seu próprio
sacrifício e refugou por medo, 4 tentativas de lançar-se ao fogo. Somente na
sequência do mergulho irrefreável de Nanauatzin, como que por contágio, ele
também lançou-se. Tal passagem é utilizada por Bataille ao pensar a noção de
dispêndio como conceito chave para entender a centralidade que o sacrifício, a
troca e a circulação têm em diversas sociedades pré-modernas, e que a
epistême moderna tem dificuldade para compreender, justamente por assentarse na noção de aquisição e progresso – o que torna automaticamente, para
nós, a valorização da perda, em especial da perda de si, própria do dispêndio,
algo da ordem do incompreensível e do “ilógico”. A mãe, então, que deseja
lançar seu filho na ALERJ em chamas, soa irracional, não por ser de fato, mas
por funcionar em outra racionalidade. Um tipo de racionalidade que, a meu ver,
está em fase de reaparição esses dias.
É aí, portanto, que penso agir a cruzada travada pela repetição da
palavra “pacificação”, que já dava seus sinais no seu uso frequente pelas
políticas de segurança no Rio de Janeiro, mas que agora ecoa como a palavra
mais normativa das últimas semanas. Trata-se, a meu ver, de uma manobra
inconscienciosa coletiva de corpos cuja herança moderna, racional e pouco
arriscada, entra em descompasso com a tendência histérica e emocional de
nosso tempo. A fim, então, de resistir a ver a inelutável vocação sacrificial de
todas essas manifestações, o discurso comum cava sua inspiração na
gramática que o forjou, mas que ora caduca, a gramática do risco zero, da
preservação, escamoteando sem saber que o que pulsa quando se grita “sem
violência” é no fundo, um rugido mais do lançar-se ao fogo que do proteger-se
dele. Importa mais, então, como gritam, do que o que gritam. Sendo assim,
quando também vão tratar os vândalos como “infiltrados”, como enviados por
alguma organização maquiavélica que pretende desestabilizar o que ora
poderia ser pacífico, usam tal movimento como resistência a ver em si mesmo
doses, mesmo que menores, daqueles que com pouca cerimônia se lançam
para cima do Caveirão ou para a fornalha no caso dos Astecas. Em outras
palavras, o vândalo é, do meu modo de entender, quem melhor traduz todos
esses movimentos que tem justamente na quantidade de vezes que repetem
“manifestação pacífica”, a prova de que no fundo, mesmo que não saibam,
marcham todos para a fornalha em busca da perda de um “si” já saturado.
Nesse mesmo sentido, o vândalo é um emissário da pluralidade, aquele
que impede que as coisas e o mundo reduzam-se à função, ao papel e uso
único que lhe fora conferido, daí que eles levam ao limite o conceito de
consumidor e no mais profundo termo da palavra, consomem tudo, incineram,
deformam, destroem, fazendo retornar o enigma original de tudo. E não me
venham reduzi-los a qualquer convicção de que estão lá a mando de uma
direita ou uma esquerda. Os linhas de frente são a molecada do nosso dia a
dia, esse bando de Nanauatzins brasileiros, para quem bala de borracha, perto
do que convivem, é diversão, é fogueira pouca. Pois bem, essa molecada não
só saqueia suas televisões e playstations, mas também os destroem, não só
cantam seus funks proibidos com louvações à Mercedes e à Honda, mas
também se empenham em quebrar seus parabrisas, em por fogo nelas, assim
como põem fogo na gramática e na propriedade pela pixação, assim como
deformam o gestual pela funkeirização, assim como aceitam o ludismo das
brigas, assumindo o parentesco entre os socos e abraços nos bailes funks e
nas torcidas organizadas. Não por acaso, são justamente neles que ainda
reside com eloquência esse calor consumidor do fogo tão comum em nossa
cultura popular (vide os facões, peixeiras, espingardas e capoeiras recorrentes
em nosso repertório), mas tão estranho aos que gritam “somos pacíficos”, nos
quais, porém, parece já estar acesa a primeira fagulha. Eu falei dos Astecas,
mas poderia ter falado de Tupinambás, de Xavantes e de Capoeiras, povo todo
esse que sabe muito bem os poderes da faísca.
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