sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Bispo do Rosário e a Arte Nova: fronteiras perigosas na perspectiva de redenção em Assim Falava Zaratustra.




A redenção de que Nietzsche propõe em seu livro Assim falava Zaratustra, em especial no capítulo cujo título é o tema aqui discutido, evidentemente não é carregado do mesmo sentido em que conhecemos de nossa formação cultural. O nosso entendimento a esta “velha redenção” sempre nos diz respeito a um sentido resultante de uma intervenção da culpa cristã através de sua moral. Elementos que habitam e se encontram enraizados em nosso logos social. Nietzsche parece nos mostrar como tais elementos operam sobre nossas vidas através de uma punição pela memória e/ou ressentimento e em segunda instancia, nosso corpo.

Mas para compreendermos a redenção de Assim Falava Zaratustra precisamos entender antes a redenção tal qual fomos condicionadas em nosso processo de apreensão cultural na nossa primeira infância. Georges Bataille em O Erotismo nos apresenta uma ideia de religiosidade que remete bem antes da formação social em que fomos submetidos. Talvez no período de transição em que o homem abandona o nomadismo e passa ao sedentarismo. A religiosidade aqui ganha sentido literal de trabalho. O que podemos entender como algo contínuo e ritualístico. Com o tempo e a consolidação social através de suas organizações culturais (artefatos, códigos de conduta, leis, etc.) a religião como suporte metafisico dentro de uma estrutura organizada passa a ganhar uma série de normas, também como leis e códigos de
conduta, dentro desse sistema e que conhecemos como doutrinas. São estas doutrinas que irão também influenciar outros setores da sociedade através dos interditos. E são estes mecanismos descritos que foram sendo construídos durante milhares de anos e que também foram inibindo nosso poder criador. E é exatamente esta redenção, que nasce no mecanicismo primordial e se instala na sociedade como sentido religioso, que Nietzsche procura derrubar para propor a sua redenção.

Como poderíamos assim começar a entender esta nova redenção que Zaratustra nos trás? Podemos usar um fragmento do capítulo Da redenção:

“O povo, contudo, dizia-me que a orelha grande era não apenas um homem, mas um grande homem, um gênio. Eu, porém, jamais acreditei no povo quando ele me falava de grandes homens, e confirmo a minha opinião de que era um aleijado às avessas que tinha pouquíssimo de tudo e uma coisa em excesso.” – (Nietzsche. pg. 106)

A ideia do gênio que aqui poderia ser entendida como uma espécie de “eleito do povo”, é o gênio constituído no status quo. O iluminado e só a ele legitimado a tornar-se o grande homem; o homem completo ou àquele que cria. O criador que para
Zaratustra não passa de um “aleijado às avessas”. Para Nietzsche, o gênio, nada mais é que categoria de distanciamento da experiência individual e ainda mais como anulação coletiva assim também como anulação da própria vontade (que aqui tem em seu antagonismo representado no povo). O gênio como elemento de estratificação. 



Nietzsche nos mostra que a vontade é uma potencia inerente a qualquer vida. E esta vontade cuja força se renova da própria destruição de si mesma para gerar a criação no momento seguinte não é um “dom” ou “talento” divino onde poucos são privilegiados.  Todos os seres possuem esta vontade, a vontade da existência. A vontade
criadora surge de nossas necessidades de continuidade. Até quando trabalhamos em atividades que não nos estimulam projetamos para o futuro os nossos anseios. O problema é que muitas dessas atividades em que trabalhamos não contribuem em nada para a nossas projeções principalmente quanto às atividades autômatos. Ou seja, de repetição. Onde só fazemos por subsistência, não tendo outra escolha, nos anulamos como seres criadores.  Em sua dissertação, Suellen da Rocha Gomes nos mostra que pelo menos em nossa imaginação, exercemos nossa potencia criadora dentro de uma “existência penosa” como na vida e obra de Franz Kafka:


“Na análise de Kafka, a existência penosa do homem e sua tentativa de livrar-se dela, ao menos pela imaginação, motivava a construção da metamorfose nos livros, expressando uma vida natural, na qual o homem não precisasse se encarcerar atrás das grades que carregava consigo. As construções cotidianas retiravam do homem sua liberdade para impor modos de vida amarrada e sujeitada:” (Gomes, Suellen, p.67, dissertação)

Outra constatação que poderíamos considerar são as nossas atividades durante o sono. Nossos sonhos é o reflexo e prova de que criamos quando estamos dormindo. Lá vivenciamos experiências totalmente distintas do que vivemos em nossa realidade quando estamos acordados. Trazemos de volta os mortos, em especial aqueles que
mais amamos; vivenciamos a experiência de nossa própria morte; realizamos nossos desejos mais íntimos e nos deparamos com nossos maiores temores em cenários que talvez jamais pudéssemos reproduzi-los em nossa realidade convencional. A proposta dos Surrealistas chegou perto, de fato, mas seu comprometimento politico e ideológico ainda era a ancora que os mantinham atracados na realidade. Assim como o personagem de uma célebre história em quadrinhos de Neil Gaiman, Sandman, personagem mitológico, faz uma aposta com a sua irmã, a Morte no dia em que esta última levaria para o reino dos mortos um morador de rua. O mestre dos sonhos teria que tornar aquele andarilho urbano em um rei. Aposta feita Orfeu, durante o sono do andarilho, sopra-lhe nos olhos um pó mágico. Ao acordar o mendigo acredita realmente que se tornara rei. Sua realidade sensível não se altera em nada. Porém, outros moradores de rua tornam-se aos seus olhos seus súditos passando ele mesmo a “cobrar impostos” (que na visão dos que eram abordados por ele pedido de esmolas) dos transeuntes pra distribuir aos seus súditos; sua cartola suja e amassada tornar-se sua coroa; até o dia em que a Morte, após perder a aposta e por isso estendeu o tempo de vida ao morador de rua em mais um dia, enfim o levou para o outro mundo.

Esta fábula contemporânea explica bem o quanto, às vezes, precisamos mergulhar na experiência para vivenciá-la. Como nos ritos religiosos que precisam de sua fé como elemento principal de todo processo e nos desligarmos do mundo, como a própria experiência do corpo e do olhar no teatro em que é preciso ficar de fora todos os pudores sociais que nos constituíram como gêneros, raças etc. os tempos modernos, constituído por séculos de sociedade no sentido organizado, só serviu para inibirmos, tanto o corpo quanto nosso poder criador. Memória e corpo; infectados pelo vírus da memória e da culpa. Elementos que obrigaram a bem pouco tempo atrás em fazer com que uma jovem mãe entrega clandestinamente seu filho para uma outra jovem cuidar sem que o pai da criançasoubesse.
A mãe havia traído seu marido. Em uma cidade pequena de Minas Gerais em que viviam, todos comentavam que a criança não parecia com este pai(mais por saberem do fato do que por constatação física). A mãe sentindo-se culpada pela memória tentou castigar seu corpo materializado no seu filho entregando-o a uma outra menor na cidade do Rio de Janeiro. Outro fator bastante interessante é, diante da imprensa, acionada pelo pai da criança, a mãe narrou uma história inverossímil, porém bastante convincente. Lágrimas rolaram de seu rosto em uma encenação digna de uma grande atriz. Não estamos aqui desdenhando dessa cena, pelo contrário, podemos repensar de fato que muitas vezes a experiência não precisa ser experimentada pelo fato em si, mas pode ser experimentada gerando o fato como seu testemunho (como nas artes). E detalhe: não há nenhum artista crismado pelos cânones da arte da arte aqui. E sim a própria vida recriando a si própria como obra de arte.


Ainda seguindo um pouco da linha de análise de Suelen, é através de uma metamorfose, nossa potencia criadora poderia de fato livra-se das amarras de uma existência burocrática. Mas não uma metamorfose transcendente e sim de transvaloração. Tornar-se outra coisa sem criar novos valores. Mas destruí-los a cada ato. Um aspecto que a nova arte, como arte contemporânea tem tentado buscar
inclusive na quebra do artista como o criador da obra colocando-o ora “como guerrilheiro” de uma ação e assim pondo seu publico em constante estado de alerta (e este alerta como urgência é o próprio estímulo criador deste publico); ora como um “propositor” em que tanto este artista e este publico se colocam em situações em que até mesmo o próprio artista possa ser “vitima” de seu jogo que não é mais dele, mas do mundo como objeto de apropriação (Morais, Frederico). 



 Mas para ter sobrevivido a esta transfiguração, Bispo do Rosário, assim como Gregor Samsa em Kafka, confronta seu corpo e sua memória. E uma não pode se
desvencilhar da outra porque, assim como Kafka, A vida de bispo é intrínseca a sua obra. E não estamos falando de autoria. Eles foram mais longe porque transformaram (transfiguraram) suas vidas em obras de arte mais até que qualquer artista ou Reality Show poderiam chegar. Até mais longe foi o Bispo porque este sim havia mergulhado na vida longe de qualquer representação. Bispo do Rosário olha para a sua memória onde lá habita todo o ressentimento cristão ele parece dizer Eu sou agora o messias, o próprio Cristo. Você não pode me castigar, o que fará a respeito?
E então ele olha para o seu corpo (sua obra); sua pele carrega a cor e os flagelos de uma etnia negligenciada pela história. Pega estes elementos da africanidade e diz, estes são os elementos que salvarão o mundo. O lixo dispensado após absorvido pela sociedade moderna será exatamente o que a salvará do juízo final.


Talvez seja a destruição dionisíaca de toda a categoria e do puro conceito “criação” que a arte possa de fato ser pura como criação? Para que ela se mantenha pura seria preciso que no instante seguinte ela não mais exista para que não a classifiquemos como obra de arte? Nela não haveria sequer a representação da arte. De qualquer forma, discutimos aqui a posição do artista na arte e na sua realidade social. A obra de arte ainda se sustenta, pois seu testemunho sempre nos fornece novas experiências.

 Talvez embora a Nova arte esteja de fato propondo uma estética do riso como afirmação da vida. Porque talvez ela esteja rindo dos valores que colocamos na
existência. Assim celebra a vida. Mas na vida, a arte parece estar presa na representação porque mesmo querendo ser outra coisa através sua experiência ritualística e seja no corpo ou fora dele, ela parece ainda estar ancorada nesse querer. O artista talvez seja esta ancora. O próprio objeto de arte tem sua autonomia quando opera no mundo. Vemos que a arte ainda sobrevive. O que não é tão simples porque esbarramos sempre em campos de tensão como a ética, por exemplo.  Mas independente de como a arte e em especial a arte nova esteja lidando com isso, sabemos que vivemos em um mundo possível, o mundo em que nossas experiências no campo criador podem nos levar a lugares incríveis e ao mesmo tempo perigosos.

Fontes de pesquisa:


Bataille, Georges.  O Erotismo, L&PM Editores.
Nietzsche, Frederich. Da redenção. In: Assim Falava Zaratustra. Hemus – liivraria Editora Ltda.
Gomes, Suellen da Rocha. Ser escrito a escrever-se na vida: protagonismo do corpo em conexões entre Nietzsche e Kafka. Dissertação. 2013.
Morais, Frederico. Contra a Arte Afluente: o corpo é o motor da “obra”. In: Bausbaun, Ricardo. Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

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