A redenção de que Nietzsche propõe em seu livro Assim falava Zaratustra, em especial no capítulo cujo título é o tema aqui discutido, evidentemente não é carregado do mesmo sentido em que conhecemos de nossa formação cultural. O nosso entendimento a esta “velha redenção” sempre nos diz respeito a um sentido resultante de uma intervenção da culpa cristã através de sua moral. Elementos que habitam e se encontram enraizados em nosso logos social. Nietzsche parece nos mostrar como tais elementos operam sobre nossas vidas através de uma punição pela memória e/ou ressentimento e em segunda instancia, nosso corpo.
Mas
para compreendermos a redenção de Assim Falava Zaratustra precisamos entender
antes a redenção tal qual fomos condicionadas em nosso processo de apreensão cultural
na nossa primeira infância. Georges
Bataille em O Erotismo nos apresenta uma ideia de religiosidade que remete bem antes da formação social em que fomos
submetidos. Talvez no período de transição em que o homem abandona o nomadismo
e passa ao sedentarismo. A religiosidade aqui ganha sentido literal de
trabalho. O que podemos entender como algo contínuo e ritualístico. Com o tempo
e a consolidação social através de suas organizações culturais (artefatos,
códigos de conduta, leis, etc.) a religião como suporte metafisico dentro de
uma estrutura organizada passa a ganhar uma série de normas, também como leis e
códigos de
conduta, dentro desse sistema e que conhecemos como doutrinas. São
estas doutrinas que irão também influenciar outros setores da sociedade através
dos interditos. E são estes mecanismos descritos que foram sendo construídos
durante milhares de anos e que também foram inibindo nosso poder criador. E é
exatamente esta redenção, que nasce no mecanicismo primordial e se instala na
sociedade como sentido religioso, que Nietzsche procura derrubar para propor a
sua redenção.
Como poderíamos assim começar a entender esta nova redenção que Zaratustra nos
trás? Podemos usar um fragmento do capítulo Da redenção:
“O povo, contudo, dizia-me que a orelha grande era
não apenas um homem, mas um grande homem, um gênio. Eu, porém, jamais acreditei
no povo quando ele me falava de grandes homens, e confirmo a minha opinião de
que era um aleijado às avessas que tinha pouquíssimo de tudo e uma coisa em
excesso.” – (Nietzsche. pg. 106)
A
ideia do gênio que aqui poderia ser entendida como uma espécie de “eleito do
povo”, é o gênio constituído no status quo. O iluminado e só a ele legitimado a
tornar-se o grande homem; o homem completo ou àquele que cria. O criador que
para
Zaratustra não passa de um “aleijado às avessas”. Para Nietzsche, o gênio,
nada mais é que categoria de distanciamento da experiência individual e ainda
mais como anulação coletiva assim também como anulação da própria vontade (que
aqui tem em seu antagonismo representado no povo). O gênio como elemento de
estratificação.
Nietzsche
nos mostra que a vontade é uma potencia inerente a qualquer vida. E esta
vontade cuja força se renova da própria destruição de si mesma para gerar a
criação no momento seguinte não é um “dom” ou “talento” divino onde poucos são
privilegiados. Todos os seres possuem esta vontade, a vontade da existência. A vontade
criadora surge de nossas
necessidades de continuidade. Até quando trabalhamos em atividades que não nos
estimulam projetamos para o futuro os nossos anseios. O problema é que muitas
dessas atividades em que trabalhamos não contribuem em nada para a nossas
projeções principalmente quanto às atividades autômatos. Ou seja, de repetição.
Onde só fazemos por subsistência, não tendo outra escolha, nos anulamos como
seres criadores. Em sua dissertação, Suellen da Rocha Gomes nos mostra que
pelo menos em nossa imaginação, exercemos nossa potencia criadora dentro de uma
“existência penosa” como na vida e obra de Franz Kafka:
“Na análise de Kafka, a existência penosa do homem e
sua tentativa de livrar-se dela, ao menos pela imaginação, motivava a
construção da metamorfose nos livros, expressando uma vida natural, na qual o
homem não precisasse se encarcerar atrás das grades que carregava consigo. As
construções cotidianas retiravam do homem sua liberdade para impor modos de vida
amarrada e sujeitada:” (Gomes, Suellen,
p.67, dissertação)
Outra
constatação que poderíamos considerar são as nossas atividades durante o sono.
Nossos sonhos é o reflexo e prova de que criamos quando estamos dormindo. Lá
vivenciamos experiências totalmente distintas do que vivemos em nossa realidade
quando estamos acordados. Trazemos de volta os mortos, em especial aqueles que
mais amamos; vivenciamos a experiência de nossa própria morte; realizamos
nossos desejos mais íntimos e nos deparamos com nossos maiores temores em
cenários que talvez jamais pudéssemos reproduzi-los em nossa realidade
convencional. A proposta dos Surrealistas chegou perto, de fato, mas seu
comprometimento politico e ideológico ainda era a ancora que os mantinham
atracados na realidade. Assim como o personagem de uma célebre história em quadrinhos
de Neil Gaiman, Sandman, personagem
mitológico, faz uma aposta com a sua irmã, a Morte no dia em que esta última
levaria para o reino dos mortos um morador de rua. O mestre dos sonhos teria
que tornar aquele andarilho urbano em um rei. Aposta feita Orfeu, durante o
sono do andarilho, sopra-lhe nos olhos um pó mágico. Ao acordar o mendigo
acredita realmente que se tornara rei. Sua realidade sensível não se altera em
nada. Porém, outros moradores de rua tornam-se aos seus olhos seus súditos
passando ele mesmo a “cobrar impostos” (que na visão dos que eram abordados por
ele pedido de esmolas) dos transeuntes pra distribuir aos seus súditos; sua
cartola suja e amassada tornar-se sua coroa; até o dia em que a Morte, após
perder a aposta e por isso estendeu o tempo de vida ao morador de rua em mais
um dia, enfim o levou para o outro mundo.
Esta
fábula contemporânea explica bem o quanto, às vezes, precisamos mergulhar na
experiência para vivenciá-la. Como nos ritos religiosos que precisam de sua fé
como elemento principal de todo processo e nos desligarmos do mundo, como a
própria experiência do corpo e do olhar no teatro em que é preciso ficar de
fora todos os pudores sociais que nos constituíram como gêneros, raças etc. os
tempos modernos, constituído por séculos de sociedade no sentido organizado, só
serviu para inibirmos, tanto o corpo quanto nosso poder criador. Memória e
corpo; infectados pelo vírus da memória e da culpa. Elementos que obrigaram a
bem pouco tempo atrás em fazer com que uma jovem mãe entrega clandestinamente seu filho para uma outra jovem cuidar sem que o pai da criançasoubesse.
A mãe havia traído seu marido. Em uma cidade pequena de Minas Gerais
em que viviam, todos comentavam que a criança não parecia com este pai(mais por
saberem do fato do que por constatação física). A mãe sentindo-se culpada pela
memória tentou castigar seu corpo materializado no seu filho entregando-o a uma
outra menor na cidade do Rio de Janeiro. Outro fator bastante interessante é,
diante da imprensa, acionada pelo pai da criança, a mãe narrou uma história
inverossímil, porém bastante convincente. Lágrimas rolaram de seu rosto em uma
encenação digna de uma grande atriz. Não estamos aqui desdenhando dessa cena,
pelo contrário, podemos repensar de fato que muitas vezes a experiência não
precisa ser experimentada pelo fato em si, mas pode ser experimentada gerando o
fato como seu testemunho (como nas artes). E detalhe: não há nenhum artista
crismado pelos cânones da arte da arte aqui. E sim a própria vida recriando a
si própria como obra de arte.
Ainda
seguindo um pouco da linha de análise de Suelen, é através de uma metamorfose,
nossa potencia criadora poderia de fato livra-se das amarras de uma existência
burocrática. Mas não uma metamorfose transcendente e sim de transvaloração.
Tornar-se outra coisa sem criar novos valores. Mas destruí-los a cada ato. Um
aspecto que a nova arte, como arte contemporânea tem tentado buscar
inclusive
na quebra do artista como o criador da obra colocando-o ora “como guerrilheiro”
de uma ação e assim pondo seu publico em constante estado de alerta (e este
alerta como urgência é o próprio estímulo criador deste publico); ora como um
“propositor” em que tanto este artista e este publico se colocam em situações
em que até mesmo o próprio artista possa ser “vitima” de seu jogo que não é
mais dele, mas do mundo como objeto de apropriação (Morais, Frederico).
Mas
para ter sobrevivido a esta transfiguração, Bispo do Rosário, assim como Gregor Samsa em Kafka, confronta seu corpo e sua memória. E uma não pode se
desvencilhar da outra porque, assim como Kafka, A vida de bispo é intrínseca a
sua obra. E não estamos falando de autoria. Eles foram mais longe porque
transformaram (transfiguraram) suas vidas em obras de arte mais até que qualquer
artista ou Reality Show poderiam chegar. Até mais longe foi o Bispo porque este
sim havia mergulhado na vida longe de qualquer representação. Bispo do Rosário
olha para a sua memória onde lá habita todo o ressentimento cristão ele parece
dizer Eu sou agora o messias, o próprio
Cristo. Você não pode me castigar, o que fará a respeito?E então ele olha para o seu corpo (sua obra); sua pele carrega a cor e os flagelos de uma etnia negligenciada pela história. Pega estes elementos da africanidade e diz, estes são os elementos que salvarão o mundo. O lixo dispensado após absorvido pela sociedade moderna será exatamente o que a salvará do juízo final.
Talvez
seja a destruição dionisíaca de toda a categoria e do puro conceito “criação”
que a arte possa de fato ser pura como criação? Para que ela se mantenha pura
seria preciso que no instante seguinte ela não mais exista para que não a
classifiquemos como obra de arte? Nela não haveria sequer a representação da
arte. De qualquer forma, discutimos aqui a posição do artista na arte e na sua
realidade social. A obra de arte ainda se sustenta, pois seu testemunho sempre
nos fornece novas experiências.
Talvez embora a Nova arte esteja de fato
propondo uma estética do riso como afirmação da vida. Porque talvez ela esteja
rindo dos valores que colocamos na
existência. Assim celebra a vida. Mas na
vida, a arte parece estar presa na representação porque mesmo querendo ser outra coisa através sua
experiência ritualística e seja no corpo ou fora dele, ela parece ainda estar
ancorada nesse querer. O artista talvez
seja esta ancora. O próprio objeto de arte tem sua autonomia quando opera no
mundo. Vemos que a arte ainda sobrevive. O que não é tão simples porque
esbarramos sempre em campos de tensão como a ética, por exemplo. Mas independente de como a arte e em especial
a arte nova esteja lidando com isso, sabemos que vivemos em um mundo possível,
o mundo em que nossas experiências no campo criador podem nos levar a lugares
incríveis e ao mesmo tempo perigosos.
Fontes
de pesquisa:
Bataille,
Georges. O Erotismo, L&PM Editores.
Nietzsche,
Frederich. Da redenção. In: Assim Falava
Zaratustra. Hemus – liivraria Editora Ltda.
Gomes,
Suellen da Rocha. Ser escrito a escrever-se na vida: protagonismo do corpo em
conexões entre Nietzsche e Kafka. Dissertação.
2013.
Morais,
Frederico. Contra a Arte Afluente: o corpo é o motor da “obra”. In: Bausbaun,
Ricardo. Arte contemporânea brasileira.
Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
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