quinta-feira, 14 de novembro de 2013

As Fronteiras Intransponíveis - Capítulo 1

  
          Um dia de celebrações mórbidas. Era uma tarde típica de Outono, embora as estações nesses tempos de agressões químicas contra a natureza tornam-se confusas. Porém, as nuvens cinzentas ejaculavam sua fina chuva contra aquele cenário. Além dos túmulos de pedra e barro, a vegetação úmida e as pessoas que usavam seus trajes enlutados, passavam um belo conjunto de tristezas e saudades formando assim, uma mórbida obra de arte de algum pintor incógnito e sombrio.

           Eu estava a uma certa distância dali. Entre as arvores. Em meio a distúrbios e conturbações que minha mente talvez não quisesse aceitar. Não havia vozes, lamentações e palavras culposas. Todo o sentimento era transformado em imagens sem sons. Ao me aproximar, tentava identificar os rostos entristecidos pela dor, mas até isso me foi privado de lembrar-se destes.

           Uma senhora ao lado de duas meninas, sendo que uma delas se parecia muito com o cadáver ali no caixão. E ao lado destas, um senhor de idade que talvez abatido pela doença e perda, não conseguia expressar uma lágrima sequer. Seu olhar se perdia entre o oceano de lembranças boas e de imagens que poderiam ter existido, mas que na verdade nunca existiram e nunca venham a existir.

           Havia muitas pessoas ali reunidas, mas o que mais me chamava à atenção foi ter visto um casal, para ser mais exato, e não pareciam ter mais que cinco anos. Talvez fossem seus filhos que ali se encontravam. Filhos daquele corpo inerte. Crianças tão jovens para conhecerem o fim de uma existência. Forte demais para quem chegara há pouco tempo para deslumbrar a existência.

           Não era mais uma criança cujo corpo que ali repousava naquela caixa mortuária, mas também não era uma criatura que se podia dizer que vivera muitos anos. Talvez o suficiente para se apaixonar, procriar, viver em grupo e depois renunciar em tão pouco espaço de tempo o doce paladar da juventude. Não importava mais e de nada adiantaria saber seus nomes e o que cada um representava para o outro e para aquele defunto.

    A cama fora lacrada e levada até o local do sepulcro. Uma procissão de vinte pessoas acompanhava o casulo sem vida daquele rapaz. Algumas choravam, outras riam e contavam piadas diante daquele cenário mórbido, mas mesmo assim, a atmosfera que os envolviam era mais contagiante que suas fugas particulares. Outras se apegavam na possibilidade de existir um lugar melhor. Que Deus poderia guardar para aquela alma, o descanso eterno enquanto os mais céticos procuravam lembrar-se dos momentos inesquecíveis que passaram ao lado daquele que um dia tivera vida como eles. Tudo que haveríamos de descobrir através de nossos espantos ao ver um cadáver ali no chão já não surte seus efeitos. A morte em si, sua religiosidade assim como seu rito são rapidamente esquecidos pelo cotidiano indiferente da existência progressista e relações fúteis. Aprendemos como é que se morre. Mas ainda desaprendemos como é que se sente.

  Parecia que o viajante temporal era um personagem de carismas extremos, embora, além de rostos tristes e inconformados, haviam outros indignados e revoltados ao que parecia direcionado ao defunto. Mas não importava as opiniões e pensamentos. O caixão chegara ao seu destino. Pás jogavam terra na cova onde este fora depositado enquanto aquela típica canção cristã executada em nossos funerais aumentava ainda mais os dolorosos prantos de dor. Pude identificar pela leitura dos lábios. Aquilo me deixava ainda mais perturbado. Como se a mim próprio já estivesse passado por tudo aquilo.

Quando a ultima pá de terra fora jogada, a chuva tinha se dissipado. As pessoas, aos poucos, iam se debandando, restando apenas a garota e seus dois filhos. Agradeci a Deus por naquele momento, ter me privado a audição para não ter que ouvir aquelas lamentações restantes. As imagens já me diziam tudo e o pior, doía em mim próprio.

A noite chegara. A mulher, por assim dizer, recolhe seus dois filhos, foram levados para a casa por um suposto membro da família. E assim eu me encontrava só naquele cenário sombrio com um passado privado de qualquer recordação; um presente inconcebível e um futuro intangível e inimaginável. Em resumo: Eu não tinha a menor ideia de quem eu era, de como eu era e para quê eu existia. Tentava imaginar qual seria a finalidade de estar ali. De minha própria consciência. Pude me aproximar mais Daquele templo de descanso temporal. Daquele jazigo de barro. E refleti sobre o fato de ter alguma ligação com aquele indivíduo sepultado. Não adiantaria muito relutar. Sabia que não conseguiria uma resposta dali. E então resolvi abandonar aquele lugar de vez. A única maneira de encontrar alguma reposta seria andar por esta vasta dimensão. Embora a audição e o tato, até aquele momento me eram privados, eu tinha a certeza que as imagens poderiam me dizer mais do que qualquer palavra.

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