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Memória:
Existiram dois irmãos, há muitos anos atrás, cuja infância não era muito
diferente das crianças de seu tempo. Banhadas todos os anos por intensas
propagandas televisivas pré-natalinas de brinquedos que representavam seu
imaginário midiatizado pelos desenhos animados, logo, não era de se espantar que
desejassem aqueles personagens de heróis “materializados” em brinquedos de
plástico.
Só que o único problema é que o
pai desses irmãos não tinha condições de comprar tais brinquedos por serem muito
caros; incompatíveis com o seu salário de pedreiro. Tinha que optar ou pela
diversão dos pequenos ou dos mantimentos da família.
Mas isto não impediu aos dois
irmãos de construírem um universo povoado de personagens criados a partir de
desenhos recortados dos papéis e carrinhos montados com caixas de sapatos, ovos
ou restos de madeira. Assim ia surgindo o que eles “fundariam” de a cidade dos brinquedos (que poderia
chamar de cidade dos papéis). Tudo parecia ser eterno. Certa vez, um dos
meninos pergunta ao seu irmão: “vamos ser crianças sempre?” o outro respondeu:
“não. Mas não fique triste, este dia vai demorar a chegar.”.
Os anos se passaram e este dia
havia chegado. E apenas um dos irmãos havia sobrevivido a este mundo tão
dispare tornando o homem que agora sou. O homem que quando menino havia
consolado seu irmão de que este dia demoraria a chegar. Chegou mais rápido do
que poderia imaginar.
Se estou escrevendo estas linhas
de cunho tão pessoal é porque as obras de Arthur Bispo do Rosário me fizeram
reconciliar com o meu passado ao mostrar que o poder criativo supera as
diversidades que se interpõe a qualquer ser humano. E Bispo do Rosário, antes
de tornar-se o Bispo da História da Arte era antes de tudo um homem que venceu
todas as limitações impostas pela sociedade e seu sistema normativo através de sua
força criadora. Transformando assim, mesmo que por razões contrárias a sua vontade,
todo o seu colecionismo, fruto de seu escambo, assim como sua própria vida em obra
de arte.
“De onde
eu venho?” – “Qual a cor da minha aura”?
Memória: Dia
nublado. Quase chuvoso. Da Pavuna para Taquara, passando antes por Madureira e finalmente
Colônia. A BRT diminuiu e muito para àqueles que como eu, precisam se
locomover até os seus trabalhos em transportes públicos. No meu caso em
especial, trabalho de campo. Confesso que relutei e muito para sair de casa.
Mas era um compromisso. Comigo e com todos àqueles que esperam isso de mim.
Ao chegar à Colônia Juliano Moreira fui recebido por dois internos que me
indicaram a recepção aonde iria me dirigir à exposição Eu trabalho com o Bispo do
programa Obra em Contexto cuja curadoria é de Ricardo Resende. Um destes internos havia me perguntado de onde eu
vinha e logo após eu ter respondido pensei ter ouvido de um deles a pergunta:
“de onde eu venho?” – juro que eu não havia entendido e por conta disso ele
havia desconversado. Tratava-se da mesma pergunta enigmática de acesso ao seu
mundo. A mesma que o Bispo do Rosário havia perguntado por décadas atrás naquele
lugar àqueles que, antes de entrar em sua cela/ateliê, precisavam antes entrar
em seu maravilhoso mundo. Decifrando a esfinge o homem acessava um novo conhecimento.
O conhecimento agora são as fronteiras que por muito tempo encontravam-se
invisíveis. Reféns de uma forma de beleza propagada pelo helenismo
ocidental.
Enfim, eu não havia passado no
teste. Havia algo de lá fora em mim.
Memória: Exposição.
Passei alguns instantes, sentado mais uma vez em frente ao filme de Hugo Denizart. O primeiro documentário
que nos trouxe à luz a Arte de Arthur Bispo do Rosário. E como tudo em Bispo
possui elementos sagrados, não se pode ver suas obras sem antes cumprir o
ritual atemporal de assistir seus relatos eternizados pelas entrevistas de Denizart no documentário. Só assim pude estar
pronto para adentrar definitivamente em seu mundo enquanto estivesse ali.
Memória: É a
palavra que me atormenta até este momento que digito estas linhas. É ela que
nos coloca no tempo uma vez que o espaço não cabe. E o espaço quase sempre não
cabe de verdade. Mas o tempo, ele fica suspenso sem a força motriz da memória
ainda que esta memória, fora da história, esteja sendo experiênciada no próprio
presente. E de fato estava presente em minha mente a cada obra em que observava
na própria exposição. Sozinho, naquelas salas da exposição, me dei conta que
eram as obras que me observavam. olhavam para dentro de minha solidão
desenterrando algo de mim. Uma parte esquecida. Culpa da memória. Minha
memória. Redenção pela do Bispo. A viagem de fato valeu a pena. As distancias
haviam se acabado.
Assim
como foi Bispo – os funcionários da Colônia Juliano Moreira mostram a sua face
humana.
O nome da exposição não poderia
fazer melhor justiça à proposta do programa. Cada funcionário da Colônia
escolheu uma obra e não só escreveu sobre ela (e que fica exposta juntamente
com o nome e a própria obra na exposição) como dá depoimento no documentário em
uma sala de exibição próxima ao Manto da Apresentação. A ideia é
que cada um não só expressasse suas impressões de cada obra (e são lindamente
sensíveis os relatos escritos ou falados), mas como autores fizessem parte das obras
da exposição o que torna visível o ser humano por trás da instituição.
Relatos que reforçam não somente esta sensibilidade em mundo cada vez mais
impessoal, como também desvela a potencia criativa que cada um desses
funcionários carrega em seu discurso.
Loucura:
O que a obra tem a ver com isso?
Memória: Muito se
fala sobre a esquizofrenia de Arthur Bispo do Rosário e os efeitos causados em
sua obra que resultaram no seu ingresso na História da Arte pelas razões nunca
antes registradas em jurisprudência*. Ainda mais que esta inserção se deu a
contragosto do próprio Bispo que dentro de sua lógica buscava apenas sua relação
com a metafisica por meio de sua missão sagrada.
Mas quando se está diante de suas
obras tais analogias são dispensáveis. Com certeza não foi a esquizofrenia de
Bispo que fez isto. Seu colecionismo encontra-se adormecido em cada um de nós. Sua
psicopatia encontra-se inativa nestas obras revelando apenas a pureza de uma
potência que por sua vez só se revela na imanência da própria obra assim como Heidegger nos revela em A Origem da Obra de Arte. O que se
encontra aqui é o que somos capazes de fazer como seres dotados de poder
criador. Do que os artistas sempre fazem quando transfiguram o mundo a sua
vontade de potencia, mas que esta mesma vontade escapa de todos nós quando a
obra passa a existir em sua autonomia de mundo. Não há nada de psicótico ou esquizofrênico
nisso. Além disso, como poderíamos definir então a loucura quando, às vezes, a
loucura é extremamente o oposto: o passar pela vida sem ter criado ou recriado
nada?
Bispo vai para mais além disso.
Suas obras revelam total isenção da culpa que todos nós carregamos. A memória
que ali habita é uma memória que reivindica seu lugar no mundo. E por isto é
legitimo porque fala da vida. “As vozes
me obrigam a fazer...” Do homem que se livra da culpa (as vozes) ao tomar o
lugar de Deus. Ele passa a ser o criador. “A
miniatura permite a minha transformação.” No que diz respeito à culpa, A escada é transmutação de Bispo. A fuga
desta culpa mortal tem em seu retorno a imortalidade redentora. Primeira obra
da exposição que, enquanto a contemplo ouço sua própria voz ecoar da sala de
projeção no filme de Denizart: “Não haverá
Acepção de classes.” O deus-autor está finalmente morto e Bispo não somente
transformou sua materialidade em obra, mas ao assumir sua missão divina,
transformou sua própria existência em obra de arte.
“Eu
preciso destas palavras”
Memória: Em obras
como Sirenos
de Jesus..., Dicionário de nomes, e seus demais
estandartes; percebemos nomes de várias pessoas, que de alguma forma fizeram
parte da vida de Bispo e que ganham imortalidade ao serem inseridas aos seus
bordados (outra memória do fazer aqui
que sobrevive desde sua terra natal e não somente isso, mas ao dadaísmo do
período modernista devida a sua dinâmica de leitura e linguagem). Podemos fazer
comparações estéticas universais quando pegamos o seu Regador 7.1 que é sem
duvida ainda mais contemporâneo quando comparado à obra Escultura de Regador
Europeu (1993-1997) de Bernard
Schazer pertencente à coleção Ludwig exposta
aqui há alguns dias no Centro Cultural
Banco do Brasil.
“Você me
trouxe aqui” – Cláudia Costa.
Memória: No Destroy
- Rio Grande do Norte. Miniaturizado
para fazer parte de seu projeto metafisico, os nomes ali habitam através de
suas hierarquias militarizadas. Fadadas a desparecerem no retorno de Bispo do
Rosário, agora transfigurado no próprio Deus, para fazer justiça. Portanto, tais nomes aqui são eternizados
somente para mostrar a memória do corpo negro castigado pelos motins que reivindicavam,
ainda no início do século XX, a igualdade de direitos e abolição dos castigos
que eram práticas teimosas sobre este corpo oprimido. Não só de nomes que
remontam memórias dolorosas, mas nomes, conforme mencionado acima, que iriam
compor memórias especiais na em Bispo como poderá se ver em seus estandartes e
seu Manto da Apresentação.
Memória: De um
tempo não muito distante. Conforme percebido pelos integrantes da colônia ao rememorarem
na obra Pont. De ônibus – Aviação Exercior light ou Carrossel.
Imagens recentes a de nossa urbanidade. Não muito distantes.
Memória: De um
presente que me impulsiona a conhecer a terra de meu conterrâneo Arthur Bispo
do Rosário. Nossa terra. Assim como ele, vindo de um passado totalmente
desconhecido. Cuja memória não trago em nada do tempo. De um tempo em que eu
era muito jovem, ainda bebê, desembarcando na Rodoviária Novo Rio com apenas um ano de vida nos braços da figura
feminina que, solitária, naqueles anos de 1977 vem em busca do marido que por
sua vez veio em busca da terra prometida um ano antes: Meu pai. A minha terra
me é tão nebulosa quanto Bispo, representante direto desta terra. Dois enigmas
em um só. Pessoal e universal.
Memória: Que me
assombra na fantasmagoria de Semblante, que do outro canto da
galeria “flutua” por uma linha invisível cuja sombra, em obediência ao manto e
que por sua vez obedece ao fraco vento que corre ali, anima-o em silêncio. Observando-me
como todas as obras que mencionei acima: e que agora justifico quando digo que ao
observar estas obras percebo que de fato são elas que me observam. Confrontam-me
porque me fazem confrontar com meu passado. Graças ao lúdico.
O lúdico é a mais maravilhosa das
memórias aqui materializadas nos carrinhos, “destroyers” e barquinhos de Bispo. Mas não é somente inocência
aqui... Mais memória. Memória em cada obra. Em especial nestes mantos, que na ausência
do corpo presente de Bispo faz lembrar-me do corpo presente do filme Amnésia de Christopher Nolan em que as tatuagens servem para que o
protagonista não perca a memória. Poderíamos comparar grosseiramente aqui ou
seria o oposto?
Memória: Universalizada
na obra Macumba. Um Assemblage
que me desperta o fetichismo das imagens e que aqui, em luxuria estética, confrontam-se
“sacras” e “profanas”, mas que no fim das contas, desprovendo a religiosidade
intolerante e a partir disso, recriando conceitos dos preconceitos faz surgir
novos significados. E que todas acabam por desembocar em novos olhares do
sagrado.
Memória: Manto da Apresentação, enfim.
Uma imagem por si só tão forte em minha memória presente, por ser justamente, a
obra mais reproduzida midiaticamente em livros, internet, etc. Sozinha como
agora, “flutuando” em um cômodo especial da galeria ou no corpo do próprio Bispo
do Rosário resgatado do passado. O manto que o levaria para além do húmus de
toda a existência estava diante ali de mim. Matéria tão frágil, mas ao mesmo
tempo emanada dessa potência reverberada por décadas atrás até os nossos dias. Memória.
Foi um prazer ter conhecido Bianca Bernardo (uma das principais
articuladoras deste projeto por ter dado estimulo àquelas vozes de se
expressarem e refletirem sobre as obras de Bispo e de si mesmas). Foi um prazer
ter conhecido a Colônia Juliano Moreira.
“Essa
obra para mim, fala de escolhas, reflexões... com pessoas melhores no governo,
teríamos um país mais justo.” – Vânia de J. Silva. (recepcionista) – sobre a
obra – Eleições.
Memória: Ao sair
vi todos aqueles rostos que deixaram suas impressões das obras no documentário
e na própria exposição. Isso de fato deu uma cara mais humanizada às paredes de
concreto que um dia abrigaram medo e solidão. Fiquei um bom tempo sentado em
frente ao prédio tentando absorver um pouco da atmosfera do lugar e do espirito
de Arthur Bispo do Rosário enquanto eu ouvia retroescavadeiras e caminhões trabalharem
ali perto confirmando o que Bianca havia me falado sobre as transformações que
o lugar estava sofrendo para dar lugar a conjuntos habitacionais ou algo assim.
Todo aquele verde está fadado a desaparecer. Toda aquela paisagem que talvez um
dia Bispo do Rosário tivesse contemplando iria se juntar a ele na memória de
todos aqui.
Respirei os últimos ares daquele
lugar e me despedi dos outros “Bispos” que me fizeram prometer que
voltaria. Tomei o ônibus de volta e
vinha comigo uma doce melancolia. Talvez por isso que esta resenha tenha ganhado
características tão pessoais. Mas é que Bispo havia falado através das suas
obras e das vozes de todas aquelas pessoas maravilhosas que ali me receberam
bem. Mas ele não fala somente a mim. Ele fala a todos independente de serem
críticos, pesquisadores, estudantes ou artistas, porque ele revela o que parece
estar se perdendo em nós através desta sociedade cada vez mais tecnocrata: o
poder criador.
*Uso aqui um termo cunhado da área jurídica transplantada pelo próprio
historiador da Arte Thierry De Duve.
Agradecimentos:
Á Marcelo Campos, meu
orientador. Por me insistir em minha ida a Colônia Juliano Moreira e que acabou
contribuindo por esta mais nova transformação em minha vida.
E Bianca Bernardo por nossas
breves conversas e por ter me estimulado
a escrever estas linhas.
Aos Bispos da atualidade
(funcionários e internos) que se encontram na Colônia.
Ao próprio Arthur Bispo do
Rosário. Por ter me conduzido ao meu passado e consequentemente ter
resgatado minha memória lúdica e não somente no que diz respeito a esta
infância, mas (espiritualmente) a nossa terra natal: Sergipe.
Não tirei nenhuma foto da exposição por algumas razões. Tais quais:
Primeiro: por estar tão imerso nas obras do Bispo; segundo: não
perguntei se poderia fazer tal registro. E terceiro: acabei por seguir a
proposta de Bispo: ao invés de trazer aquelas imagens na memória digital, trago
na minha memória afetiva e espiritual.