quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Eu trabalho com o Bispo - Exposição de memórias confrontadas.



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Memória: Existiram dois irmãos, há muitos anos atrás, cuja infância não era muito diferente das crianças de seu tempo. Banhadas todos os anos por intensas propagandas televisivas pré-natalinas de brinquedos que representavam seu imaginário midiatizado pelos desenhos animados, logo, não era de se espantar que desejassem aqueles personagens de heróis “materializados” em brinquedos de plástico.
Só que o único problema é que o pai desses irmãos não tinha condições de comprar tais brinquedos por serem muito caros; incompatíveis com o seu salário de pedreiro. Tinha que optar ou pela diversão dos pequenos ou dos mantimentos da família.

Mas isto não impediu aos dois irmãos de construírem um universo povoado de personagens criados a partir de desenhos recortados dos papéis e carrinhos montados com caixas de sapatos, ovos ou restos de madeira. Assim ia surgindo o que eles “fundariam” de a cidade dos brinquedos (que poderia chamar de cidade dos papéis). Tudo parecia ser eterno. Certa vez, um dos meninos pergunta ao seu irmão: “vamos ser crianças sempre?” o outro respondeu: “não. Mas não fique triste, este dia vai demorar a chegar.”.
Os anos se passaram e este dia havia chegado. E apenas um dos irmãos havia sobrevivido a este mundo tão dispare tornando o homem que agora sou. O homem que quando menino havia consolado seu irmão de que este dia demoraria a chegar. Chegou mais rápido do que poderia imaginar.

Se estou escrevendo estas linhas de cunho tão pessoal é porque as obras de Arthur Bispo do Rosário me fizeram reconciliar com o meu passado ao mostrar que o poder criativo supera as diversidades que se interpõe a qualquer ser humano. E Bispo do Rosário, antes de tornar-se o Bispo da História da Arte era antes de tudo um homem que venceu todas as limitações impostas pela sociedade e seu sistema normativo através de sua força criadora. Transformando assim, mesmo que por razões contrárias a sua vontade, todo o seu colecionismo, fruto de seu escambo, assim como sua própria vida em obra de arte. 


“De onde eu venho?” – “Qual a cor da minha aura”?

Memória: Dia nublado. Quase chuvoso. Da Pavuna para Taquara, passando antes por Madureira e finalmente Colônia. A BRT diminuiu e muito para àqueles que como eu, precisam se locomover até os seus trabalhos em transportes públicos. No meu caso em especial, trabalho de campo. Confesso que relutei e muito para sair de casa. Mas era um compromisso. Comigo e com todos àqueles que esperam isso de mim.

Ao chegar à Colônia Juliano Moreira fui recebido por dois internos que me indicaram a recepção aonde iria me dirigir à exposição Eu trabalho com o Bispo do programa Obra em Contexto cuja curadoria é de Ricardo Resende. Um destes internos havia me perguntado de onde eu vinha e logo após eu ter respondido pensei ter ouvido de um deles a pergunta: “de onde eu venho?” – juro que eu não havia entendido e por conta disso ele havia desconversado. Tratava-se da mesma pergunta enigmática de acesso ao seu mundo. A mesma que o Bispo do Rosário havia perguntado por décadas atrás naquele lugar àqueles que, antes de entrar em sua cela/ateliê, precisavam antes entrar em seu maravilhoso mundo. Decifrando a esfinge o homem acessava um novo conhecimento. O conhecimento agora são as fronteiras que por muito tempo encontravam-se invisíveis. Reféns de uma forma de beleza propagada pelo helenismo ocidental. 
Enfim, eu não havia passado no teste. Havia algo de lá fora em mim.

Memória: Exposição. Passei alguns instantes, sentado mais uma vez em frente ao filme de Hugo Denizart. O primeiro documentário que nos trouxe à luz a Arte de Arthur Bispo do Rosário. E como tudo em Bispo possui elementos sagrados, não se pode ver suas obras sem antes cumprir o ritual atemporal de assistir seus relatos eternizados pelas entrevistas de Denizart no documentário.  Só assim pude estar pronto para adentrar definitivamente em seu mundo enquanto estivesse ali.

Memória: É a palavra que me atormenta até este momento que digito estas linhas. É ela que nos coloca no tempo uma vez que o espaço não cabe. E o espaço quase sempre não cabe de verdade. Mas o tempo, ele fica suspenso sem a força motriz da memória ainda que esta memória, fora da história, esteja sendo experiênciada no próprio presente. E de fato estava presente em minha mente a cada obra em que observava na própria exposição. Sozinho, naquelas salas da exposição, me dei conta que eram as obras que me observavam. olhavam para dentro de minha solidão desenterrando algo de mim. Uma parte esquecida. Culpa da memória. Minha memória. Redenção pela do Bispo. A viagem de fato valeu a pena. As distancias haviam se acabado.

Assim como foi Bispo – os funcionários da Colônia Juliano Moreira mostram a sua face humana.

O nome da exposição não poderia fazer melhor justiça à proposta do programa. Cada funcionário da Colônia escolheu uma obra e não só escreveu sobre ela (e que fica exposta juntamente com o nome e a própria obra na exposição) como dá depoimento no documentário em uma sala de exibição próxima ao Manto da Apresentação. A ideia é que cada um não só expressasse suas impressões de cada obra (e são lindamente sensíveis os relatos escritos ou falados), mas como autores fizessem parte das obras da exposição o que torna visível o ser humano por trás da instituição. Relatos que reforçam não somente esta sensibilidade em mundo cada vez mais impessoal, como também desvela a potencia criativa que cada um desses funcionários carrega em seu discurso.


Loucura: O que a obra tem a ver com isso?

Memória: Muito se fala sobre a esquizofrenia de Arthur Bispo do Rosário e os efeitos causados em sua obra que resultaram no seu ingresso na História da Arte pelas razões nunca antes registradas em jurisprudência*. Ainda mais que esta inserção se deu a contragosto do próprio Bispo que dentro de sua lógica buscava apenas sua relação com a metafisica por meio de sua missão sagrada.
Mas quando se está diante de suas obras tais analogias são dispensáveis. Com certeza não foi a esquizofrenia de Bispo que fez isto. Seu colecionismo encontra-se adormecido em cada um de nós. Sua psicopatia encontra-se inativa nestas obras revelando apenas a pureza de uma potência que por sua vez só se revela na imanência da própria obra assim como Heidegger nos revela em A Origem da Obra de Arte.   O que se encontra aqui é o que somos capazes de fazer como seres dotados de poder criador. Do que os artistas sempre fazem quando transfiguram o mundo a sua vontade de potencia, mas que esta mesma vontade escapa de todos nós quando a obra passa a existir em sua autonomia de mundo. Não há nada de psicótico ou esquizofrênico nisso. Além disso, como poderíamos definir então a loucura quando, às vezes, a loucura é extremamente o oposto: o passar pela vida sem ter criado ou recriado nada?


Bispo vai para mais além disso. Suas obras revelam total isenção da culpa que todos nós carregamos. A memória que ali habita é uma memória que reivindica seu lugar no mundo. E por isto é legitimo porque fala da vida. “As vozes me obrigam a fazer...” Do homem que se livra da culpa (as vozes) ao tomar o lugar de Deus. Ele passa a ser o criador. “A miniatura permite a minha transformação.” No que diz respeito à culpa,  A escada é transmutação de Bispo. A fuga desta culpa mortal tem em seu retorno a imortalidade redentora. Primeira obra da exposição que, enquanto a contemplo ouço sua própria voz ecoar da sala de projeção no filme de Denizart: “Não haverá Acepção de classes.” O deus-autor está finalmente morto e Bispo não somente transformou sua materialidade em obra, mas ao assumir sua missão divina, transformou sua própria existência em obra de arte.

“Eu preciso destas palavras”


Memória: Em obras como Sirenos de Jesus..., Dicionário de nomes, e seus demais estandartes; percebemos nomes de várias pessoas, que de alguma forma fizeram parte da vida de Bispo e que ganham imortalidade ao serem inseridas aos seus bordados (outra memória do fazer aqui que sobrevive desde sua terra natal e não somente isso, mas ao dadaísmo do período modernista devida a sua dinâmica de leitura e linguagem). Podemos fazer comparações estéticas universais quando pegamos o seu Regador 7.1 que é sem duvida ainda mais contemporâneo quando comparado à obra Escultura de Regador Europeu (1993-1997) de Bernard Schazer pertencente à coleção Ludwig exposta aqui há alguns dias no Centro Cultural Banco do Brasil.

“Você me trouxe aqui” – Cláudia Costa.

Memória: No Destroy - Rio Grande do Norte. Miniaturizado para fazer parte de seu projeto metafisico, os nomes ali habitam através de suas hierarquias militarizadas. Fadadas a desparecerem no retorno de Bispo do Rosário, agora transfigurado no próprio Deus, para fazer justiça.  Portanto, tais nomes aqui são eternizados somente para mostrar a memória do corpo negro castigado pelos motins que reivindicavam, ainda no início do século XX, a igualdade de direitos e abolição dos castigos que eram práticas teimosas sobre este corpo oprimido. Não só de nomes que remontam memórias dolorosas, mas nomes, conforme mencionado acima, que iriam compor memórias especiais na em Bispo como poderá se ver em seus estandartes e seu Manto da Apresentação.

Memória: De um tempo não muito distante. Conforme percebido pelos integrantes da colônia ao rememorarem na obra Pont. De ônibus – Aviação Exercior light ou Carrossel. Imagens recentes a de nossa urbanidade. Não muito distantes.

Memória: De um presente que me impulsiona a conhecer a terra de meu conterrâneo Arthur Bispo do Rosário. Nossa terra. Assim como ele, vindo de um passado totalmente desconhecido. Cuja memória não trago em nada do tempo. De um tempo em que eu era muito jovem, ainda bebê, desembarcando na Rodoviária Novo Rio com apenas um ano de vida nos braços da figura feminina que, solitária, naqueles anos de 1977 vem em busca do marido que por sua vez veio em busca da terra prometida um ano antes: Meu pai. A minha terra me é tão nebulosa quanto Bispo, representante direto desta terra. Dois enigmas em um só. Pessoal e universal.

Memória: Que me assombra na fantasmagoria de Semblante, que do outro canto da galeria “flutua” por uma linha invisível cuja sombra, em obediência ao manto e que por sua vez obedece ao fraco vento que corre ali, anima-o em silêncio. Observando-me como todas as obras que mencionei acima: e que agora justifico quando digo que ao observar estas obras percebo que de fato são elas que me observam. Confrontam-me porque me fazem confrontar com meu passado. Graças ao lúdico.

O lúdico é a mais maravilhosa das memórias aqui materializadas nos carrinhos, “destroyers” e barquinhos de Bispo. Mas não é somente inocência aqui... Mais memória. Memória em cada obra. Em especial nestes mantos, que na ausência do corpo presente de Bispo faz lembrar-me do corpo presente do filme Amnésia de Christopher Nolan em que as tatuagens servem para que o protagonista não perca a memória. Poderíamos comparar grosseiramente aqui ou seria o oposto?

Memória: Universalizada na obra Macumba. Um Assemblage que me desperta o fetichismo das imagens e que aqui, em luxuria estética, confrontam-se “sacras” e “profanas”, mas que no fim das contas, desprovendo a religiosidade intolerante e a partir disso, recriando conceitos dos preconceitos faz surgir novos significados. E que todas acabam por desembocar em novos olhares do sagrado.

Memória: Manto da Apresentação, enfim. Uma imagem por si só tão forte em minha memória presente, por ser justamente, a obra mais reproduzida midiaticamente em livros, internet, etc. Sozinha como agora, “flutuando” em um cômodo especial da galeria ou no corpo do próprio Bispo do Rosário resgatado do passado. O manto que o levaria para além do húmus de toda a existência estava diante ali de mim. Matéria tão frágil, mas ao mesmo tempo emanada dessa potência reverberada por décadas atrás até os nossos dias. Memória.

Foi um prazer ter conhecido Bianca Bernardo (uma das principais articuladoras deste projeto por ter dado estimulo àquelas vozes de se expressarem e refletirem sobre as obras de Bispo e de si mesmas). Foi um prazer ter conhecido a Colônia Juliano Moreira.

“Essa obra para mim, fala de escolhas, reflexões... com pessoas melhores no governo, teríamos um país mais justo.” – Vânia de J. Silva. (recepcionista) – sobre a obra – Eleições.


Memória: Ao sair vi todos aqueles rostos que deixaram suas impressões das obras no documentário e na própria exposição. Isso de fato deu uma cara mais humanizada às paredes de concreto que um dia abrigaram medo e solidão. Fiquei um bom tempo sentado em frente ao prédio tentando absorver um pouco da atmosfera do lugar e do espirito de Arthur Bispo do Rosário enquanto eu ouvia retroescavadeiras e caminhões trabalharem ali perto confirmando o que Bianca havia me falado sobre as transformações que o lugar estava sofrendo para dar lugar a conjuntos habitacionais ou algo assim. Todo aquele verde está fadado a desaparecer. Toda aquela paisagem que talvez um dia Bispo do Rosário tivesse contemplando iria se juntar a ele na memória de todos aqui.

Respirei os últimos ares daquele lugar e me despedi dos outros “Bispos” que me fizeram prometer que voltaria.  Tomei o ônibus de volta e vinha comigo uma doce melancolia. Talvez por isso que esta resenha tenha ganhado características tão pessoais. Mas é que Bispo havia falado através das suas obras e das vozes de todas aquelas pessoas maravilhosas que ali me receberam bem. Mas ele não fala somente a mim. Ele fala a todos independente de serem críticos, pesquisadores, estudantes ou artistas, porque ele revela o que parece estar se perdendo em nós através desta sociedade cada vez mais tecnocrata: o poder criador.


*Uso aqui um termo cunhado da área jurídica transplantada pelo próprio historiador da Arte Thierry De Duve.

Agradecimentos:

Á Marcelo Campos, meu orientador. Por me insistir em minha ida a Colônia Juliano Moreira e que acabou contribuindo por esta mais nova transformação em minha vida.

E Bianca Bernardo por nossas breves conversas e por  ter me estimulado a escrever estas linhas.

 Aos Bispos da atualidade (funcionários e internos) que se encontram na Colônia.

Ao próprio Arthur Bispo do Rosário. Por ter me conduzido ao meu passado e consequentemente ter resgatado minha memória lúdica e não somente no que diz respeito a esta infância, mas (espiritualmente) a nossa terra natal: Sergipe.



Não tirei nenhuma foto da exposição por algumas razões. Tais quais:

Primeiro: por estar tão imerso nas obras do Bispo; segundo: não perguntei se poderia fazer tal registro. E terceiro: acabei por seguir a proposta de Bispo: ao invés de trazer aquelas imagens na memória digital, trago na minha memória afetiva e espiritual.



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