a cara de quem levou tanta porrada
queria ter menos cara de quem levou tanta porrada
queria ter a carcaça mais fina
um olhar menos esperando o próximo soco
queria esperar menos o pior de tudo e de todos
queria a dissimulação de quem diz “não, obrigado”
a irrelevância de um estúpido “de nada”
eu aguento, mas eu queria mesmo era ter
menos cara de quem levou tanta porrada
queria ter a sofisticação de uma infância tranquila
a classe da despreocupação
de um fino vestido longo estampado
ajustado a uma pele branquinha e sem eczemas
a esguiez aristocrática de quem não conhece
o gosto do próprio sangue escorrendo nos lábios
nem do sufoco da espera lastimada
eu aguento, mas eu queria mesmo era ter
menos cara de quem levou tanta porrada
eu revido sempre
deixo cicatrizes nos outros
aguento bem o tranco
mas eu queria mesmo era
o silêncio de quem esvazia a mente
de quem carrega um sorriso histórico
covarde e vitorioso
de quem sempre vence
sem calejar os dedos
a elegância de quem não aguenta
10 minutos de briga na calçada
eu aguento, mas eu queria mesmo era ter
menos cara de quem levou tanta porrada
eu desfiguro sim
algumas dessas delicadezas
e não há nada de mais nisso
cumpro meu papel de
feliz guaipeca
outra porrada
guerreira, sobrevivente
mais uma porrada
duas dezenas na conta
outra porrada
sujeita histórica de si
a fisionomia popular
que pelos punhos dos murros
dos outros foi forjada
eu aguento, mas eu queria mesmo era ter
menos cara de quem levou tanta porrada
eu sorrio cínica
não me abalo
com a boca sangrando
nunca peço desculpas
é tudo verdade
todos os absurdos que falam de mim
– morreu, feriu, apanhou e nunca desculpou-se –
nada contra essa exatidão
mas eu só queria mesmo era sentar um pouco
com a luz do sol no rosto despejada
eu aguento, mas eu queria mesmo era ter
menos cara de quem levou tanta porrada.
Acho que todos nós.
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