segunda-feira, 21 de junho de 2010

O negro na telenovela, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira

O negro na telenovela, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira

Examinar a representação dos atores negros em quase 50 anos de história da telenovela brasileira, principal indústria audiovisual e dramatúrgica do país, é trazer à tona a decadência do mito da democracia racial, sujando assim uma bela mas falsa imagem que o Brasil sempre buscou difundir de si mesmo, fazendo crer que a partir de nossa condição de nação mestiça, superamos o “problema racial” e somos um modelo de integração para o mundo.

Nenhum dos grandes atores negros parece ter escapado do papel de escravo ou serviçal na história da telenovela brasileira, mesmo aqueles que quando chegaram à televisão já tinham um nome solidamente construído no teatro ou no cinema, como Ruth de Souza,  Grande Otelo, Milton Gonçalves e Lázaro Ramos. Esta afirmativa pôde ser constatada na pesquisa que fizemos sobre a representação do negro na história da telenovela brasileira, que deu origem ao filme e livro “A Negação do Brasil.”


 A partir dos anos 80, podemos afirmar que houve uma lenta mas progressiva ascensão do negro na dramaturgia da teleficção. Mesmo assim, identificamos que num terço das telenovelas produzidas pela Rede Globo, até o final dos anos 90, não havia nenhum personagem afro-descendente. Apenas em outro terço, o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar levemente a marca de dez por cento do total do elenco. Considerando que somos um país que tem uma população de cerca de 50 por cento de afro-descendentes, esta é uma demonstração contundente de que a telenovela nunca respeitou as definições étnico/raciais que os brasileiros fazem de si mesmos.
 Racismo e invisibilidade das raças
O racismo brasileiro apareceu na telenovela somente como uma das características negativas do vilão, e não como um traço ainda presente na sociedade e na cultura brasileira. Até ao final dos anos noventa, poucas telenovelas trataram a discriminação racial contra o negro brasileiro de forma direta. Na teleficçao, assim como na nossa sociedade, a vergonha de demonstrar o próprio preconceito, ou o “preconceito de ter preconceito”, conforme alertava o sociólogo Florestan Fernandes, criou o tabu que inibe a manifestação aberta do racismo e fortaleceu o consenso em torno do mito da democracia racial brasileira.


Mas a pior armadilha para os atores negros tem sido a manifesta opção por profissionais brancos para representar a beleza ou, até mesmo, o brasileiro comum. Uma estética produzida pela persistencia da ideologia do branqueamento em nossa cultura, um discurso construido no seculo dezenove que é revivido no dia a dia de nossas telinhas através da esclusiva escolha de louras como apresentadoras ideiais dos programas infantis,  e de modelos brancos para os papéis de galãs e mocinhas.


As oportunidades para o mulato no Brasil da telenovela
Em nenhuma telenovela brasileira houve qualquer defesa da mestiçagem brasileira, nem mesmo nas adaptações das obras de Jorge Amado. O mulato foi sempre apresentado como feitor ou capitão do mato nas novelas escravocratas, ou como pequeno comerciante e delegado, portanto sempre no papel de serviçais intermediários, mais interessados em subir na vida a qualquer preço, suportando a humilhação por sua origem “impura”, buscando evitar as referências a sua condição de mestiço e servindo às necessidades de controle do negro na sociedade.


Na telenovela, a melhor oportunidade reservada para o mestiço, que sempre foi celebrado nas discussões teóricas como melhor representação do verdadeiro brasileiro, é na representação do “povão”, ou seja, transeuntes, malandros e moradores dos bairros populares. Os atores marcadamente mestiços, independente da fusão racial que pertencem, se trazem em seus corpos e em suas faces uma maior quantidade de traços não-brancos, são sempre vítimas de estereótipos negativos. Como exemplo, Dira Paes, uma atriz de cinema que, por ter traços indígenas acentuados, tem pouco espaço na TV, sendo convidada somente para o papel de uma empregadinha cômica e de pouca inteligência no sitcom “A Diarista”. Ou José Dumont, um ator sempre ausente das telenovelas por ter fortes traços do homem do sertão nordestino. E Nelson Xavier, com uma das carreiras mais profícuas no cinema, em decorrência dos seus traços de negro-mulato, sempre foi escolhido para fazer o papel do pequeno comerciante ressentido, do delegado “frouxo”, do “típico malandro brasileiro”, e somente usou terno e gravata em uma telenovela depois de mais de vinte anos de história na televisão.


O espetáculo da miscigenação das imagens transmitidas do carnaval nos sambódromos do Rio de Janeiro para o mundo não encontra eco na telenovela. Persiste sempre a idéia de superioridade do branco.


A telenovela, assim, ao não dar visibilidade à verdadeira composição racial do país, compactua conservadoramente com o uso da mestiçagem como escudo para evitar o reconhecimento da importância da população negra na história e na vida cultural brasileira. Pactua com um imaginário de servidão e de inferioridade do negro na sociedade brasileira. Participando assim de um massacre contra aquilo que devia ser visto como o nosso maior patrimonio cultural diante de um mundo dividido por sectarismos e guerras étnicas e religiosas, o orgulho de nossa multirracialidade.

A miscigenação - discurso estratégico do branqueamento
A natureza do debate sobre a mestiçagem no Brasil, apesar de conviver permanentemente com ambigüidades e contradições, sofreu poucas mudanças no decorrer dos últimos cem anos. Embora no período final da escravidão o mestiço fosse visto como uma degeneração racial, a miscigenação já aparece no discurso dos abolicionistas como solução para evitar a polarização de raças no país (Santos, 2002). Mas será nos anos 30 que o conceito sofrerá uma inversão positiva nas mãos de uma intelligentsia brasileira que procurou criar uma imagem autóctone do país, através da afirmação do nativo, do caboclo e do mestiço, em reação diante dos processos agudos de europeização (Bosi, 1994), que tinha no velho continente o paradigma para a compreensão da cultura do novo mundo. No entanto, mesmo estando sob a batuta daqueles que marcaram profundamente a vida cultural contemporânea, como Gilberto Freyre, os modernistas e os romancistas que surgiram do ciclo da literatura chamada regionalista, como Jorge Amado, a afirmação da miscigenação esteve sempre associada à idéia de que nessa terra se criava uma nação com uma nova raça. Os brasileiros, frutos de um hibridismo onde prevaleceria a homogeneidade racial e cultural, deixaria para trás, de forma completamente superada, a divisão racial de nossa formação. Nasce, nesse contexto, o conhecido mito da democracia racial brasileira.


Porém, é falso crer que o Brasil seria um país singular, único paraíso da democracia racial, fundado na valorização do mestiço. A ideologia da mestiçagem foi um traço comum na construção da identidade nacional da maior parte dos países latino-americanos. Na América de língua espanhola, nos anos vinte, as idéias de um dos mais importantes intelectuais mexicanos da época, José Vasconcelos, que elogiava o mestiço como o resultado de uma fusão original, uma quinta raça “cósmica”, teve um efeito impactante em vários países latino-americanos. Um exemplo disto foi Benjamin Carrion, o intelectual equatoriano, criador da Casa de la Cultura Ecuatoriana, fundador e entusiasta defensor da idéia de que seu país era um exemplo de nação mestiça, e em 1928 já considerava José Vasconcelos como “el Maestro de América” (Cervone, 1999: 9). 



No entanto, tal como aconteceu no Brasil, para todos esses intelectuais, a miscigenação configurou-se sempre como uma mitologia fundadora das novas nações latino-americanas que trazia na identidade nacional mestiça a superação da heterogeneidade racial, étnica e cultural de sua formação. E, em todas estas construções, a existência de negros e índios foi progressivamente apagada ou, no mínimo, diluída a partir da apropriação das suas culturas como parte integrante de uma nova cultura nacional original.


No entanto, cabe destacar que os nossos intelectuais “fundadores”, como Gilberto Freire, Mário de Andrade e outros, da mesma forma que os intelectuais latino-americanos de língua espanhola, sempre ressaltaram o aspecto positivo da miscigenação, não em sua faceta genética, mas no resultante das fusões culturais oriundas do negro, do índio e do branco, que produziram a original cultura brasileira.


Somente assim podemos entender que o discurso de valorização de nossa cultura mestiça nunca se fez contraditório a consolidação da estética e do ideário do branqueamento presentes desde o tempo de colônia e que  tornou-se o padrão para a produção do cinema e da telenovela brasileira, e para grande parte dos cineastas brasileiros desde o seu início. Conforme podemos observar neste comentário do editor da Revista Cinearte, no final dos anos 20:
“Fazer um bom cinema no Brasil deve ser um ato de purificação de nossa realidade, através da seleção daquilo que merece ser projetado na tela: o nosso progresso, as obras de engenharia moderna, nossos brancos bonitos, nossa natureza.” (Cinearte apud Debs, 2002:80)


Portanto, apesar de sempre valorizada e celebrada nos discursos do Estado, da intelectualidade e na literatura, a miscigenação nunca deixou de ser vista como um estado de passagem das ´raças inferiores` para a raça superior branca. A citação, logo a seguir, de Oliveira Viana, um dos mais destacados membros da elite intelectual das primeiras décadas do século XX, traz de forma demasiadamente explícita o desejo de que a miscigenação seria a melhor ponte para eugenização através da diluição do negro na sociedade branca, apagando assim a mancha de nossa origem africana.
“Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca.” (apud Munanga,1997)

Preconceitos
As marcas resultantes desse desejo no imaginário do povo brasileiro começaram a ser verificadas em estudo realizado nos anos cinqüenta por Oracy Nogueira, onde ele compreendeu que desenvolvemos uma forma de preconceito distinta dos Estados Unidos, que dão “margem a uma controvérsia difícil de superar” (Nogueira, 1979: 77). Nosso preconceito racial atém-se mais às aparências, as marcas fenotípicas, quando mais traços físicos de negros mais problemas, diferente do preconceito racial de origem, norte-americano, em que uma gota de sangue negro é fator de exclusão, independente da pessoa ter mais traços brancos do que negros.


E hoje, os mitos da “raça cósmica”, ou do “mulato isoneiro” (tema de uma música celebre de Ari Barroso) caem por terra quando observamos as telenovelas brasileiras, mexicanas, colombianas, venezuelanas, ou produzidas em qualquer parte da América Latina, que funcionam como os melhores atestados de que sempre prevaleceu a ideologia da branquitude como formadora do padrão ideal de beleza e, ao mesmo tempo, como legitimadora da idéia de superioridade do segmento branco. A escolha dos galãs, dos protagonistas, celebra modelos ideais de beleza européia, em que quanto mais nórdico os traços físicos mais alto ficará o ator ou atriz na escolha do elenco. Os mesmos também receberão as melhores notas nos processos de escolha e premiação dos mais bonitos do ano pelas revistas que fazem a crônica cotidiana do mundo das celebridades. E, no lado contrário, os atores de origem negra e indígena, serão escalados para representar os estereótipos da feiúra, da subalternidade e da inferioridade racial e social, de acordo com a intensidade de suas marcas físicas, seu formato de rosto, suas nuanças cromáticas de pele e textura de cabelo, portanto de acordo com o seu grau de mestiçagem.


Todos esses atores, portanto, sendo eles afro-descendentes ou índio-descendentes, são obrigados a incorporar na televisão a humilhação social que sofrem os mestiços em uma sociedade norteada pela ideologia do branqueamento, onde a acentuação de traços negra ou indígena significa uma consciência difusa e  contraditória de ser uma casta inferior que deve aceitar os lugares subalternos intermediários do mundo social.


No entanto, o inconsciente racial coletivo brasileiro, não acusa nenhum incômodo em ver tal representação da maioria do seu próprio povo, e provavelmente de si mesmo, na televisão ou no cinema. A internalização da ideologia do branqueamento, provoca uma “naturalidade” na produção e recepção dessas imagens, e uma aceitação passiva e concordância que esses atores realmente não merecem fazer parte da representação do padrão ideal de beleza do país.

Branqueamento da realidade
Mas a ideologia do branqueamento, também estará norteando os comentários dos programas esportivos na TV, nas páginas de jornal, ou os xingamentos nos estádios de futebol. Os nossos jogadores negros-mestiços, que sempre levam ao topo a imagem do país, e o orgulho da nossa nacionalidade, são obrigados a suportar a permanente humilhação pelo estigma de suas aparências,  sua “impura” feiúra, nas inúmeras comparações com o jogador branco europeu, a exemplo das eleições dos homens mais bonitos das copas mundiais de futebol, que, “naturalmente”, escolhem o inglês David Beckham e outros homens brancos.


Mesmo diante de fatos como esses, que podem ser encontrados diariamente nos jornais, grande parte de nossa intelectualidade continua acreditando que o problema da desigualdade no Brasil é apenas decorrente do fosso entre classe sociais, e não do nosso sistema de castas raciais. E, dessa forma, assistem passivamente como se fosse uma exceção na vida social a “expulsão” da mãe do jogador Ronaldo de um condomínio de luxo da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. E, possivelmente, esses mesmos intelectuais também se divertem e comentam o que ouvimos nas ruas, que é apenas o poder do dinheiro e da fama de “feras” tão feias como Ronaldo e Ronaldinho,  que seduzem e conquistam  as “belas” modelos brancas saídas das passarelas do mundo fashion.


Portanto, voltando a época dos prognósticos de Oliveira Viana, o único fato que parece traçar uma grande diferença entre uma ponta e outra do século XX, é o crescimento da capacidade de pressão do próprio segmento populacional negro que nunca viu na miscigenação uma válvula de escape para o problema racial e, portanto, nunca concordou com as teses defendidas pela elite branca. E, ao longo do século XX, sempre reagiu aos padrões excludentes impostos, buscando desenvolver uma identidade de negritude.


Esse evidente choque de opiniões e perspectivas raciais entre, de um lado, o mundo branco, composto por diretores de telenovela, cinema, professores universitários e jornalistas e, do outro, de artistas, ativistas e intelectuais negros, me faz perguntar: por quanto tempo manteremos uma realidade social tão cindida e esquizofrênica? Por quanto tempo o debate negará a existência de um componente racial na sangrenta guerra que os jovens negros e negros-mulatos escalados pelo narcotráfico fazem com a polícia (a ordem branca) nos morros do Rio de Janeiro? Por quanto tempo o insistente avanço dos fazendeiros na região amazônica e centro-oeste, com a sua permanente destruição dos grupos étnicos indígenas, ficará fora do debate étnico-racial do país e da atenção internacional que acredita que somos um paraíso da miscigenação racial?


Esta realidade permanentemente inconclusa, em que diretores de telenovelas, professores e reitores universitários, o mundo dos formadores de opinião de classe média branca, negam que os preconceitos de marca sofridos por afro-descentes e índio-descendentes tenham um papel importante na nossa hierarquia social e na desigual distribuição de poder e recursos, atesta uma dialética contraditória sobre o problema racial brasileiro. Diante da sintomática recusa de discutir, mas permanentemente discutindo  e condenando de racista quem defende posições contrárias, revela-se assim uma hiperconsciência inversamente proporcional àquilo que é enfaticamente negado (Vargas,2004).   Revela os estertores de um mito poderoso que somente ainda continua de pé porque  ainda assegura privilégios para aqueles que o defende. 



Bibliografia
ARAÚJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira. São Paulo, Editora Senac, 2000.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 33ª. Ed. São Paulo, Cultrix, 1994.
CERVONE, Emma. The ‘Real’ Mestizos and the Making of Ecuadorian National Identity. 1999 (mimeo).
DEBS, Sylvie. Cinéma et Littérature au Brésil. Les Mythes du Sertão. Émergence d´Une Identité Nationale. Paris, L´Harmattan, 2002.
MUNANGA, Kabenguele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus identidade negra. Tese de Livre-Docência em Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo (mimeo), 1997.
NOGUEIRA, Oracy. Tanto Preto Quanto Branco: Estudo de Relações Raciais. São Paulo, T. A.Queiroz, 1979.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A Invenção do Ser Negro: um Percurso das Idéias que Naturalizaram a Inferioridade dos Negros. São Paulo/Rio de Janeiro, Educ/Fapesp, Pallas, 2002.
VARGAS, João H. Costa. “Hyperconsciousness of Race and Its Negation: The Dialetic of White Supremacy in Brazil”, in Identities, 11, 2004, pp. 443-70.


Originalmente publicado na revista francesa de cinema “Revue annuelle de l’Association Rencontres Cinemas d’Amerique Latine de Tolouse-(ARCAL)”. 2007- no. 15. págs 17-27.


http://www.buala.org/pt/afroscreen/o-negro-na-telenovela-um-caso-exemplar-da-decadencia-do-mito-da-democracia-racial-brasile?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+buala-pt+%28BUALA+|+Cultura+Contempor%C3%A2nea+Africana%29&utm_content=FeedBurner

Nenhum comentário:

Postar um comentário